segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O SAMBA SAIU DE MODA





Por Sérgio Cabral  (Pai)
MÚSICA NAQUELA BASE
(Pasquim, nº 4, 1969)

Há uns sete ou oito anos atrás, os estudantes descobriram os sambistas mais populares e promoveram vários shows com a participação deles. Aí virou moda convidá-los pra tudo que é festinha. Madame queria reunir os amigos e chamava Nelson Cavaquinho. Fulano de tal convidava Cartola e o deputado nordestino chamava Zé Keti, João do Vale, e Ismael Silva.
    Os crioulos cantavam para os grã-finos, que achavam tudo muito bacana porque pagavam somente uísque e salgadinhos, dinheiro não. Só numa pequena fase da vida nacional é que eles viram um pouco de dinheiro no Zicartola, em alguns shows e no teatro. E voltaram para os seus morros e para os seus subúrbios porque a grã-finada e a classe média da Zona Sul se encheram deles, uns chatos!
Saíram de moda os talentosos crioulos, mas que fim eles levaram? Vejamos.
    Cartola – Atualmente, é porteiro do gabinete do ministro da Indústria e do Comércio, das oito da manhã à uma da tarde. O fundador da gloriosa Estação Primeira de Mangueira saiu há pouco tempo de um problema financeiro muito desagradável, conseqüência ainda do Zicartola, que andou lotado durante muito tempo mas depois andou às moscas, os seus freqüentadores, certa época, trocaram o Zicartola pelo Castelinho. Não tinha nada a ver uma coisa com outra, mas o pessoal queria mesmo era badalar. O Zicartola deixou para o velho Cartola uma dívida de mais ou menos dois milhões de cruzeiros velhos que foi paga, primeiramente, graças ao seu samba. Tive sim, finalista da Bienal do Samba da TV-Record. Depois, o Teatro Opinião promoveu um espetáculo em seu benefício que lhe rendeu também alguma grana. Cartola, que estava morando em Bento Ribeiro, mudou-se novamente para o seu Morro da Mangueira, longe do qual jamais a sua  mulher, a excelente cozinheira e pastora da escola, jamais conseguiu morar. Cartola não tem aparecido em show nenhum. Canta de vez em quando para os seus amigos mangueirenses, entre os quais o velho Carlos Cachaça, amigo e parceiro.
    Zé Keti – sempre irritou alguns dos seus “protetores” porque nunca foi humilde como aquelas pessoas sempre desejaram que fossem os sambistas: “Este crioulo é muito metido à besta”, dizem. Nunca perdoaram Zé Keti porque ele se vira muito bem, aproveita as oportunidades, catitua suas músicas, faz enfim como fazem todos os compositores. Por isso, quando ele viu que este negócio de samba não estava dando muito pé, arranjou um contrato com a TV-Excelsior, de São Paulo, como ator de novela por três milhões de cruzeiros velhos, por mês, o que também irrita muita gente, aquele moleque ganhando três milhões por mês, vejam só! Noutro dia, ele participou de um programa da TV-Tupi de São Paulo, no qual submeteu um dos seus sambas a um júri que o repeliu com a maior violência. “Este samba está superado, ainda fala em Vila Isabel”, foi a sentença da comissão julgadora, afinal de contas, tão imbecil quanto é toda estrutura comercial da música popular brasileira atualmente.
    Nelson Cavaquinho – Não ficou nem um pouquinho abalado com as idas e vindas da moda. Quem quiser encontrá-lo é só procurá-lo nos mesmos lugares que freqüentava há 20 anos, os botequins da Lapa, da Praça Tiradentes e da Avenida Marechal Floriano. Faz sambas tão bonitos quanto os que fazia na época em que era convidado para os saraus da grã-finada. Só que agora os canta para o seu velho público, os freqüentadores dos botecos da vida, as prostitutas, os malandros. A sua sorte foi ter arranjado uma casa na Vila Kennedy, dando um pouco de tranqüilidade para a sua mulher, pois o Nélson não é exatamente o melhor chefe de família da Terra. Se alguém quiser contratá-lo para um show pode fazê-lo sem susto, porque Nelson Cavaquinho não bebe quando tem trabalho. Fora disso, porém, continua representando uns 500 brasileiros no consumo per capita de bebida.
    João do Vale – Vive mais ou menos como Nelson Cavaquinho, só que um tanto quanto abalado pelas variações que a vida lhe ofereceu. Freqüenta um boteco na esquina da Avenida Marechal Floriano com Miguel Couto e pode ser encontrado também na União Brasileira dos Compositores. Continua morando no subúrbio de Deodoro. Recentemente, ele recebeu os direitos autorais de Carcará pelo mundo. E tem coisas assim: Ncr$ 0,80 da Inglaterra... Ncr$ 1,20 da França, Ncr$  0,25 do Japão, Ncr$ 0,77 dos Estados Unidos e outros. Resultado: Ncr$ 22,00 no mundo inteiro por este sucesso internacional. Agora, ele está com uma música inscrita no Festival Internacional da Canção (letra de Artur José Poerner), realmente muito boa, e que deverá ser classificada caso a comissão de seleção tenha a cabeça no lugar.
    Ismael Silva – está com sessenta e poucos anos e mora numa pensão na Av. Gomes Freire. A última vez que participou de um espetáculo público foi no Samba Pede Passagem, em 1966. Agora, está tomando as últimas providências para obter uma aposentadoria pelo Instituto Nacional da Previdência Social, através do Sindicato dos Compositores. Continua compondo e teve um samba classificado no concurso de carnaval de São Paulo. 
    Martinho da Vila – Apareceu agora. Oxalá os tempos sejam outros.

COMO DIZIA O POETA:
“ONDE ESTÃO OS CRIOULOS DE ANTANHO?”


copiado a partir de O PASQUIM, Antologia, Volume I (1969-1971)
Organização: Jaguar e Sérgio Augusto
Editora Desiderata – Rio de Janeiro
2006

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O Samba e os Movimentos Sociais




Como muitos sabem, o samba, enquanto uma manifestação cultural e artística urbana, teve uma origem muito conturbada. Oriunda das classes populares, menos abastadas, pobres, numa sociedade machista, racista, conservadora e elitista, o samba passou por inúmeras formas de preconceito, sendo assimilado como uma arte vulgar, manifestada por pessoas sem valor, sem moral, malandros, aproveitadores. São muitas as histórias que relatam a truculência da policia frente aos sambistas. Estes últimos eram espancados, tinham seus instrumentos apreendidos, eram presos e desmoralizados socialmente. Como forma de fugir desta onda de perseguições, os sambistas foram obrigados manifestar sua arte de forma escondida, em terreiros, ou no fundo das casas de algumas pessoas que os acolhiam, como no caso da Tia Ciata, figura emblemática da história do samba.
Porém, em meados dos anos 30 as coisas começam a mudar. Oriundo de muita resistência e dentro da perspectiva do nacionalismo que então passa a influenciar as visões politicas da época, o samba passa a ser o carro-chefe da unidade cultural que os donos do poder (sob o comando de Getúlio Vargas) tentam impor a todo o território brasileiro. O samba, oriundo de nosso povo e de nossa terra, passa a ser cantado em verso e proza, e os sambistas de maior destaque passam a ser conhecidos. Neste momento, a indústria musical, fonográfica, dá seus primeiros passos, mas já passa a ter capacidade de ditar as modas do momento.
Com a intensificação da industrialização e das empresas transnacionais dos anos 50, por sua vez, o Brasil em geral, e sua cultural especificamente, passa a receber influências externas de forma ainda muito mais significativa, especialmente dos Estados Unidos, através de um processo de imposição cultural, que mistura monopólio dos meios de comunicação com interesses politico-econômico. O controle daquilo que é bom e ruim culturalmente, daquilo que será moda cultural, passa a estar envolvido numa trama de interesses que deixa de estabelecer qualquer relação com o espaço geográfico nacional. Agora, não há mais nem um interesse de unidade “nacional”, mas antes, o interesse do lucro. Acreditamos que este processo se desenrola até os dias atuais.

Mas o que o samba e os sambistas têm a ver com isso? Apesar do samba ter se tornado uma manifestação artística que abarca toda a população, criando um imaginário de unidade “nacional”, o fato é que aqueles que o inventaram, organizaram, desenvolveram, e ainda o manifestam, vivem em condições precárias: os pobres, excluídos e oprimidos.
Não só no Brasil, mas em toda América Latina (pra não dizer em todos os países dependentes e subdesenvolvidos), notou-se um processo de externalização da cultura popular, frente a sua população. Explicando melhor, enquanto a cultura popular (no nosso caso, o samba), passa a ser um instrumento que, idealmente, une todos dentro de uma perspectiva nacional, coletiva, mas, na prática, é usada como mais um mecanismo de realização de lucros exorbitantes, o povo, seu criador, continua vivendo sem condições dignas de vida, sem educação de qualidade, sem saúde e transporte públicos, sem moradia. Sofrem dia a dia um processo de superexploração, aumentando as desigualdades e injustiças que se acumulam.
 E é por isso que todos que “fazem samba”, esta cultura genuinamente popular, devem vê-lo como de resistência. Como uma arte do povo e para o povo. Ele deve servir aos interesses de sua população e com ela denunciar as injustiças e desigualdades. Ele deve, portanto, associar-se aos movimentos sociais, aqueles que de fato lutam por justiça e igualdade, seja do morro ou da cidade.

Pois tudo vai mudar, no “dia em que o morro descer e não for carnaval”.
“Somos todos Pinheirinho !!!”

Abaixo exponho o samba de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro: “O dia em que o Morro descer e não for carnval”



Texto em homenagem aos lutadores e lutadoras expulsos de forma truculenta do Pinheirinho  (São José dos Campos - SP)

domingo, 20 de novembro de 2011

Nos Caminhos da Igualdade




Frente aos festejos referentes ao mês e ao dia da Consciência Negra, nos cabe refletir sobre o seu verdadeiro significado. Às necessidades de manifestações artístico-culturais que expresse certa cultura de certa origem e identidade, dever-se-ia somar a busca de reflexões dos motivos pelos quais, após 500 anos de “Brasil”, o povo negro, maioria, cuja influencia cultural é tão patente nas formas de manifestações de toda a sociedade brasileira, não foi integrado na sociedade brasileira moderna.
 Pelo contrário, as estruturas sociais herdadas de uma conjuntura histórica particular permanecem, e o passado colonial, em suas diversas formas, sobrevive no presente, seja na forma de ocupação do território, seja na dinâmica econômica pautada por interesses exógenos ao país, seja na relação entre classes sociais, em que a questão racial passa a se associar com os dilemas socioeconômicos dos países periféricos e dependentes, fazendo com que a superação do problema anterior passe a estar relacionado com este último, e vice-versa.
É nestes marcos que, neste dia, não apenas apontamos tais problemas, mas exaltamos em geral todos aqueles que lutaram e continuam lutando pela superação dos reais problemas dos povos oprimidos em geral, e do povo negro em particular. Em particular, exaltamos Milton Santos, negro, nordestino, perseguido em tempos de ditadura, que apesar de todos os condicionantes socioeconômicos, não relutou em expor as questões centrais da sociedade humana em diversos níveis, revolucionando a forma de pensar a humanidade e o espaço.
Foi neste sentido que, nos últimos anos de sua vida, este intelectual denunciou os efeitos deletérios do desenvolvimento técnico-produtivo a qualquer custo, e em escala planetária, da sociedade ocidental, que põe em risco, através da desagregação do espaço econômico nacional e dos seus impactos ambientais, a própria existência da espécie humana, denunciando, portanto, radicalmente o processo de globalização em marcha.
Assim, sua denúncia ferrenha das desigualdades regionais e sua defesa dos povos da periferia do sistema faz de Milton Santos um intelectual verdadeiramente orgânico, cuja análise e atuação política nunca se deixaram iludir pela pura abstração metafísica da academia autocrática, tentando, na medida do possível, superar o pessimismo da razão por meio do otimismo da prática, porque, conforme escrito por Brecht, “são os que lutam a vida toda é que são imprescindíveis”!

Milton Santos: Presente !!!!!
“Estamos no Período Popular da História !”
(Milton Santos)
Abaixo, postamos um samba-enredo da GRES Camisa 12 (2003), em homenagem a Milton Santos, composto por Ceza Be, Edson Sorriso, Ezekiel Muvuca e Wagner Santos.



 Texto dedicado a Valdir Oliveira e ao saudoso camarada Maurício de Jesus. 



  



terça-feira, 19 de julho de 2011

A problemática do Samba



O Samba pode ser visto como uma enorme árvore, com raízes profundas, galhos e ramificações infinitas. De origem duvidosa, esta cultura afro-brasileira tem suas raízes nas três principais civilizações que no Brasil viveram (e ainda vivem): indígena, africana e européia. Do morro ou da cidade, do maxixe ou da umbigada, o que sabemos de fato é que o samba não nasceu pronto. A sua constituição foi fruto de um conjunto de fatores históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais.
Não somente o samba não nasceu pronto como também, ao se constituir como um movimento cultural das classes menos privilegiadas, não deixou de se metamorfosear. E não poderia ser de outra maneira, visto que os fatores descritos acima não ficaram estáticos, mas pelo contrário, se desenvolveram em meio à contradição de uma sociedade tão complexa, injusta e desigual como a brasileira.
Da umbigada, da seresta, do maxixe, da mistura de cordas, com chocalhos, tambores, pandeiro (instrumento árabe), o samba nasce, cresce e passa por diversas fases, incorporando diversos elementos de dentro e de fora das fronteiras sobre o qual este país foi constituído. Dos terreiros, do choro, da batucado do Estácio, do samba de breque, de terreiro, de quadra, do samba baiano, paulista e mineiro, do afro-samba, do samba-rock, aos pagodes da esquina, esta arte não deixou de desenvolver formas autênticas de manifestação.
Aqui é importante destacar que os problemas vividos pelo samba não são novos. Mercantilização, preconceitos, negócios escusos, apropriação privada, exploração da imagem e da música por interesses externos à cultura do samba “é coisa da antiga”. Não cabe aqui mencionar os casos e exemplos destes problemas, mas apenas destacar que a constituição do samba é fruto de uma sociedade complexa e que, por isto mesmo, não apenas reproduz os problemas circunscritos neste meio mas também, e ao mesmo tempo, cria relações humanas que as superam.
São por estes motivos que a idealização de épocas passadas, de formas de manifestações artísticas e culturais em si mesmas, independentemente do contexto em que estas foram realizadas, pouco ajuda a entender o problema por que passou e passa tanto a cultura brasileira em geral, quanto o samba, especificamente. Além de não condizer com os fatos, a idealização abstrata implica numa postura anacrônica, saudosista, e negativista quanto as novas formas culturais que surgem naturalmente da própria dinâmica sócio-cultural de um país miscigenado como o Brasil.
Sim, é necessário preservar  e respeitar a cultura popular. Mas a necessidade não ´provém do fato de que nesta época a cultura era “pura” e vacinada contra as “más influências”  de dentro e de fora. É necessário preservá-la porque a sua manifestação representa uma forma de constituição originária de um povo, representa uma identidade de uma sociedade que apesar de contínuas mutações, apresenta laços solidariedade (ainda que em decadência nas últimas décadas).
No caso específico do samba, estes laços são as próprias raízes. Mas como as raízes do samba são variadas, as formas de preservá-las também o são. Somos contrários às hipóteses que afirmam que só existe um tipo de samba raiz, apenas uma forma de preservas as origens do samba ou que só existe uma forma de se fazer o verdadeiro samba autêntico. Do contrário, acreditamos que a raiz do samba está no formato rítmico e melódico, no batuque, na simplicidade harmônica e na nobreza melódica. E estas características podem ou não podem ser encontradas tanto num samba “antigo” como num samba “novo”, seja executado com repique de mão ou com repique de anel, com cavaco ou banjo.  
 Portanto, temos que olhar o passado, para entender o nosso presente o projetar o futuro que queremos para a nossa cultura popular em geral, e para o samba em particular. O passado deve ser um guia para o futuro. O samba está vivo, “agoniza, mas não morre”. Ele está mais do que presente nas centenas de escolas de samba espalhadas pelo Brasil inteiro, nas comunidades e nos projetos de samba e resgate, na periferia, nos bares e na esquina. De fato: o samba não é, o samba está sendo. E será ainda melhor. Fechamos com Paulo César Pinheiro e João Nogueira quando afirmam: E cantar, ainda vai ser bom, quando samba primeiro, não for prisioneiro deste desespero e resignação, E lá vai minha voz, espalhando então, o meu samba guerreiro, fiel mensageiro da população”

Abaixo postamos o vídeo (clipe) do grupo Social Samba Fina. Trata-se de uma regravação do samba “Lá de Angola” de João Nogueira e Geraldo Vespar. Acreditamos que este clipe é muito representativo do que dissemos acima.
                                                                                                      

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Onde está a Liberdade? Valeu Zumbi!


 


      Antônio Cândido: O Mestre-Sala dos Sete Mares.
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Cento e vinte e três anos depois da Lei Áurea, a questão racial ainda tem suma importância. Basta olharmos ao redor para vermos a clivagem social existente entre grupos étnicos e “raciais”.
Embora o Brasil seja um país majoritariamente miscigenado, “misturado”, esta miscigenação concentrou-se primordialmente entre as classes menos abastadas, onde a partir de então, foram se constituindo - historicamente - padrões culturais e sociais típicos. No vértice da pirâmide social, não obstante, a encontramos a predominância de grupos sociais de cor branca. Somado à profunda e descarada concentração da riqueza em nossa sociedade, é possível concluir, fazendo algumas mediações, que o Brasil é uma sociedade cujo poder político e econômico é concentrada na mão de uma minoria que é composta majoritariamente por brancos, em detrimento de uma maioria que é composto majoritariamente por negros e pardos, além de mestiços (cafuzos e mamelucos).
Não é possível dizer que a questão racial no Brasil é um “mito”. Ela existe e é evidente. Se, diferentemente de outros paises - como o caso dos EUA ou no caso da África do Sul -, esta questão não aparece de maneira explícita, não havendo uma oposição racial direta entre grupos, no Brasil ela se apresenta de forma indireta, sob a forma econômica, onde a exclusão social passa a ser dada não por leis raciais, mas por leis econômicas, leis de mercado. A exclusão dos negros das universidades, das escolas de ponta, dos serviços básicos, enfim, de todos os “atrativos” de uma sociedade de consumo de massa, é um dos aspectos mais visíveis desta “questão racial”. Basta analisarmos a proporção de negros dentro das universidades em relação à proporção de negros dentro de presídios ou nas favelas, para vermos o quão gritante é a nossa clivagem sócio-racial.
 Ademais, numa sociedade subdesenvolvida como a nossa, baseada na superexploração e em elevados graus de dominação política e econômica, a questão racial não é apenas um problema de “crescimento econômico”, ou seja o problema de integração dos negros e pardos no mercado de trabalho. É um problema mais profundo. Oitenta anos de crescimento econômico - de 1930 a 1980 – não foram suficientes para eliminarmos a questão racial. Pelo contrário, é neste período que surgem as favelas, os cortiços, as grandes aglomerações urbanas, a pobreza e miséria explícita ocupando os morros e as vielas das muitas “cidades maravilhosas”.
Portanto, a questão racial é, na essência, mais profunda do que parece, é substancialmente política, que se manifesta de sob formas econômicas e ideológicas (desvalorização da cultura e imposições de padrões de beleza). A superação deste problema não se dará senão por meio da resistência, do enfrentamento político-ideológico; e a questão racial passa a estar atrelada com a própria questão democrática, nacional e social. O negro se libertará de fato quando, atrelado aos anseios do povo em geral, tomar para si as rédeas de sua história. Valeu Zumbi!



No carnaval 1988, ano do 100º aniversário da abolição da escravidão, todas as escolas de samba do Rio de Janeiro decidiram, em forma de homenagem, levar para a avenida enredos que tratassem dos negros em geral. Para muitos aquele carnaval foi um dos mais emocionantes de todos os tempos. Naquele ano, entretanto, duas escolas se destacaram: a Unidos de Vila Isabel, com o enredo “Kizomba, festas das raças”, e a Mangueira, com o enredo “100 anos de liberdade, realidade ou ilusão?”. Ambas ficaram, respectivamente em 1º e 2º lugares. Até hoje estes sambas encantam e são tocados em todos os redutos de samba. Abaixo posto o link dos vídeos deste samba.





terça-feira, 10 de maio de 2011

Como pensar a cultura nacional numa sociedade de origem colonial?





Um dos pontos polêmicos quando discutimos desenvolvimento socioeconômico refere-se aos aspectos culturais do mesmo. Este aspecto se torna mais problemático quando tratamos das especificidades da formação étnico-cultural de países periféricos, cuja formação social se deu a partir de influencias de povos tão distintos, conforme muito debatido por Darcy Ribeiro.
Outro ponto relevante nesta discussão é o caráter desta formação social. Diferentemente de outros países, de cuja formação sociocultural tem origem milenar, no caso brasileiro, a organização social e econômica estabelecida desde o período da colonização sempre esteve voltada para a satisfação de interesses externos, exógenos às necessidades da população em geral. A grande propriedade e a superexploração de caráter escravista voltada para a realização de grandes negócios mercantis impediu que se constituísse uma sociedade pautada por “nexos morais”. Estas características irão, por sua vez, se arrastar por séculos até os dias atuais, conformando uma sociedade desmembrada, injusta e ultra desigual.
Mas, contraditoriamente, é o próprio desenvolvimento quantitativo desta economia, subordinada aos limites impostos pelas ralações socioeconômicas externas, que vai criando condições objetivas para o surgimento de uma outra sociedade. Caio Prado Jr ao analisar a “linha mestra” dos acontecimentos da nossa história, dizia que o Brasil era uma espécie de sociedade “híbrida”, em transformação, de difícil definição. Para resolver este dilema, o mesmo apontava que o mesmo estaria num processo de “longa transição do Brasil Colônia de ontem para o Brasil Nação de amanhã”. Assim, para defender tal “tese”, o mesmo aponta algumas transformações qualitativas no decorrer dos fatos históricos: a) independência (ainda que formal) política; b) abolição da escravidão; c) constituição (ainda que de forma relativamente incipiente) de um mercado interno; d) constituição de um substrato social interno, em função da integração entre diversos grupos étnicos de origens diferenciados.
Mas como para Caio Prado Jr, uma Nação significa uma certa organização politica, social e econômica construída por uma sociedade, e voltada para atender às necessidades de todos os membros constituintes da mesma, o Brasil precisaria superar dois principais entraves para conseguir constituir-se de fato como Nação: a) superar a dependência externa, voltando completamente sua economia para a satisfação das necessidades de sua população; b) eliminar a profunda desigualdade social, a superexploração, que fratura a sociedade em dois grandes blocos sociais desconexos.
Para piorar o problema, com o avanço da industrialização pesada nos anos 50 e com a implementação da ditadura militar em 1964, não apenas Caio Prado, mas autores como Florestan Fernandes e Celso Furtado passam a deixar de acreditar na capacidade das classes dominantes em serem os agentes desta transformação. Par Fernandes, o golpe de 1964 teria sido a finalização da “Revolução Burguesa” brasileira, cujo caráter anti-social, anti-democrático e anti-nacional foram os elementos específicos de um tipo especifico de capitalismo: o capitalismo dependente.   
Destro destes marcos, como entender a cultura brasileira? Podemos chamá-la de cultura nacional sendo que para estes grandes autores nem somos ainda uma nação?
Trata-se de uma questão de difícil resposta, com diversas formas de encaminhamento. Primeiramente, é inegável a diversidade cultural da sociedade brasileira. É inegável também o elevado grau de miscigenação do nosso povo. Mas diferentemente de abordagens “ufanistas”, a nossa formação histórica não pode ser vista como heroica, e neste sentido, a interação cultural nesta sociedade foi muito mais contraditória do que parece, e o próprio processo de miscigenação se deu de forma coercitiva e opressiva. Do ponto de vista da diversidade cultural, o aspecto mais impressionante deste processo é que, numa sociedade cujos elementos de sua formação se originaram, em boa parte, de influências externas, as próprias formas de manifestações culturais se apropriaram de diversas características exógenas. Isto dará um caráter novo a esta sociedade que surge. É neste sentido que Darcy Ribeiro afirmará que teria surgido um novo povo, constituído no confronto e na fusão, povo este misturado, com traços sincréticos e simbólicos singulares.
Podemos, portanto, definir esta cultura particular criada e recriada no Brasil como Nacional? Caso seguirmos os três primeiros autores acima, certamente diríamos que não. No máximo diríamos que a sociedade brasileira teria criado as bases de uma cultura nacional, mas que ela não teria se desenvolvido até o seu fim, visto que teria também se fundamentada em estruturas societárias muito injustas e desiguais. Ademais, quando analisamos mais de perto estas manifestações culturais, notamos que em sua grande maioria, elas são oriundas das classes mais pobres e miseráveis da nossa sociedade. Portanto, podemos dizer que a cultura brasileira, apesar de não ser efetivamente nacional no sentido exposto anteriormente, é genuinamente popular. Assim, esta cultura pode ser vista como expressão contraditória das múltiplas relações humanas desta sociedade, que hora reproduz e hora problematiza (direta ou indiretamente) os dilemas vividos pelo nosso povo em geral.
Nos dias de hoje, contudo, esta discussão se torna ainda mais complexa. Num contexto de internacionalização econômica, social e cultural em função do processo de globalização, e com a consolidação de uma indústria cultural de massa altamente influente e ancorada pelos poderosos meios de comunicação, tanto a influencia cultural externa deixa de ter seu papel positivo (em função da imposição direta e indireta, de cima para baixo, de certos padrões de vida e de consumo), quanto a própria arte produzida internamente fica completamente submetida aos ditames mercantis da moda. Ademais, esta mesma cultura popular passa a ser apropriada por agentes que alienados dos espaços de sua manifestação, transformam o seu significado, apoiados hora por critérios “políticos” (manutenção e reprodução do poder e da desigualdade), hora por critérios econômicos.
Portanto, nos marcos atuais, a reversão neocolonial não se circunscreve a aspectos estritamente econômicos. Ela cerca e submete todas a relações humanas, inclusive as artístico-culturais. E como não serão as classes dominantes que farão a “Revolução Nacional”, a própria origem da “Cultura verdadeiramente Nacional” será a Popular, a de Resistência, que aliada às necessidades e vontades da sua população, contribuirá para o surgimento de uma nova sociedade, de uma “Nação”.

“Viva o Samba, Viva a Cultura Popular !!!!”

(Texto dedicado a alma deTomás / IE Unicamp)

Abaixo ponho um samba de João Bosco e Aldir Blanc, chamado “Nação”, gravado por Clara Nunes.

domingo, 1 de maio de 2011

Por uma educação libertadora na forma e no conteúdo: uma homenagem a Paulo Freire



Em tempos de hegemonia das teorias do “capital humano”, onde a educação é vista apenas pela ótica quantitativista (numero de alunos por sala, índice de aprovação, numero de artigos publicados e etc) os aspectos qualitativos do processo socioeducativo vão se esvaindo, e a educação em si mesmo vai se tornando uma grande indústria de produção e reprodução em série de conhecimentos desconexos que deixam de refletir (direta e indiretamente) os problemas apresentados pela realidade. Assim, as discussões programáticas passam girar em torno apenas daquilo que se ensina e não como e de que forma se ensina. 
O maior educador do Brasil, Paulo Freire, em vida, foi um dos que mais discutiu estas questões. Consciente das relações de dominação e opressão em nossa sociedade, Paulo Freire, propunha uma educação que não reproduzisse tais relações, e sim a superasse, constituindo uma verdadeira educação libertadora, catalizadora de uma ação e reflexão, que possibilitasse “armar” os oprimidos no seu próprio processo de emancipação.
É neste movimento que ele vai criticar a educação “bancária”, a educação narrativa, unidirecional, que “enche” os alunos (fragmentos da realidade) de conteúdos desconexos (como arquivos segmentados) e vazios de elementos concretos. A ênfase no “o mundo é” teria como pressuposto uma realidade imutável, cujo saber em si, por sua vez, seria antes uma doação, já que supõe um ser que sabe e um ser que não sabe. Há por de trás desta análise uma absolutização da ignorância, que o educador aliena ao educando. Como consequência, este tipo de educação pressupõe a existência de apenas um sujeito (educador) e de um objeto (educandos), onde a realidade é posta como algo petrificada, parada e bem comportada, faltando uma visão de totalidade do mundo, cuja absorção dos conteúdos passa a se dar por meio de memorizações mecânicas. Os educandos se tornam vasilhas ou gavetas onde conhecimentos externos são depositados ou arquivados. Obviamente, para o mesmo autor, este tipo de educação serviria antes aos opressores do que aos oprimidos, visto que o educando é impedido de ser sujeito, ao anular seu poder criador. Assim, os oprimidos não conseguiriam seguir sua vocação histórica de ser mais.
É nestes marcos, portanto, que o Paulo Freire vai abordar a necessidade de se construir uma outra educação, uma educação problematizadora, partindo de outras premissas e princípios. Esta “nova” educação partiria da visão dos homens como corpos conscientes, cuja mesma é intencionada ao mundo e, portanto, não existe consciência separada do homem e nem separada do mundo. Logo, o saber não é algo alheio à realidade e a outros homens, mas antes é fruto da interação entre homens e o mesmo com o mundo. O conhecimento é coletivo, e portanto “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre sí, em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Assim, a educação se dá, não na transferência, mas no diálogo, ondo a problematização do objeto do conhecimento (qualquer que seja) será a grande mediatizadora dos sujeitos cognoscentes (educador e educando). Ao contrário da educação bancária, na qual o objeto passível de conhecimento é o fim do ato cognoscente do sujeito, na educação problematizadora o objeto cognoscível é o meio para entrar nos sujeitos cognoscíveis. Ou seja, a reflexão sobre a realidade, sobre o mundo, deve voltar-se para a reflexão sobre si já que não existe separação entre sujeito e objeto (entre o homem e o mundo). Na medida em que vamos conhecendo o mundo (objeto), vamos aumentando o conhecimento sobre nós mesmos e sobre os outros (sujeitos). Esta educação responderia, nestes marcos, à consciência da consciência: conhecer a si não é nada mais do que conhecer a sua história, o seu posicionamento no mundo.
Consequentemente, o educador ao perceber a complexidade do mundo e que o mesmo está em constante mutação, está em constante aprendizado, não alienando sua ignorância. O educador se torna um educador-educando. Ademais, a incidência da reflexão da realidade entre os educadores e os educandos através do diálogo permite ao educador-educando refazer constantemente o seu conhecimento por meio do próprio conhecimento do educando. Logo, o educando passa a ser um educando-educador.
Nesta nova relação os educandos (agora educandos-educadores) são chamados a conhecer, e não a memorizar; a imersão da consciência na realidade tem como resultado uma emersão critica da realidade; a própria problematização da realidade leva aos agentes deste processo a integrarem as partes do conhecimento (por meio das suas interconexões) de modo a formar uma visão de totalidade da realidade. A imersão e a reflexão crítica dos problemas faz com que o conhecimento supere o nível da “doxa” (ingenuidade, senso comum), e siga o nível do “logos” (“razão”).
Esta seria, assim, uma educação como pratica libertadora, já que veria os homens como seres históricos, inconclusos, conscientes da sua historicidade e inconclusão, na busca de ser mais. A educação passa a ser um “quefazer” permanente, já que o mundo não é, está sendo!

“Esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos. Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros sejam, esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser. Precisamente porque é, não pode o ter de alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez de poder”. (Paulo Freire)

Abaixo posto o samba-enredo da escola de samba Leandro de Itaquera, que, em seus tempos áureos (1999), homenageou o nosso grande mestre ficando em 5º lugar: “Educação um salto para a liberdade: ‘Paulo Freire’”.